segunda-feira, 22 de julho de 2013

Sobre escrita, pessoas e desafios: Serra Fina, a travessia.

Escreveu Fernando Pessoa: "Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos". O que configura uma travessia? o que seria abandonar "roupas usadas" e o que seria esse retorno a "nós mesmo", esse nos deslocar de uma margem a qual vivemos? Perguntas difíceis, mas que aparecem nas nossas dúvidas e inseguranças a todo tempo. Minha vida, e de algumas pessoas que fazem parte dela, de uma forma ou de outra, parece uma busca incessante para responder perguntas desse calibre. Existem respostas? não sei, mas me falaram que o que nos movem são as perguntas...

Estive um tempo afastado do blog (me desculpe quem gosta de ler...), pois estava engajado em escrever meu mestrado, o que consumia toda minha inspiração. Para quem não sabe, sou um péssimo escritor, escrevo muito mal. Quando pensei em fazer esse blog ele me serviria para duas coisas: praticar mais a escrita, pois dependo dela já que meu "trabalho" é produzir textos oriundos de minhas pesquisas (estou concluindo meu mestrado em Antropologia); e, também, para compartilhar com meus amigos as minhas experiências de vida. Desde de minha última postagem muita coisa rolou: competi no interior de Minas em outubro de 2012, ficando em segundo; fiz uma viagem sensacional pelo nordeste, a rota das emoções (entre Maranhão e Ceará); voltei ao Chauás 300km, mas desta vez competindo em quarteto, conseguindo a 5º colocação; e competi em Guapé, MG, ganhando com Diogo, meu parceiro, uma prova de 115km. Mas, com tudo isso para inspirar, não me sobrou tempo pra escrever.

A escrita é uma forma de expressão especial. Ela consegue fazer – leitor e autor – mergulhar no fundo das nossas almas, buscando experiências pra traduzir em imagens sensoriais aquilo que foi vivido e experimentado em outro tempo e, as vezes, por outra pessoa. Para mim a escrita é sempre uma ficção, mesmo quando estou escrevendo um relato de um fato real. Digo isso, pois, as minhas recordações são como um filme seletivo, onírico, com conexões estranhas, as vezes. Mas, sobretudo, um filme real, no sentido de que é fruto de uma experiência vivida; ou melhor, uma experiência sem a qual eu não viveria, e não vivo. Assim vocês devem ler esse texto, ele tem algo meio alucinatório...

Da esquerda para a direita: Vinícius, Daniel, Pablo, Renata, Pedro e Renato.
Quem leu o blog deve se recordar de uma postagem em que eu relatei a tentativa de fazer a Serra Fina, umas das Travessias mais duras e bonitas do país, em um tiro único. Naquela vez cometemos – eu e Pablo – um sequência de erros que nos colocou numa situação horrorosa, quase morremos. Passamos uma noite do inferno (apesar de não estar calor!), de muito frio e chuva. Conseguimos voltar, mas não terminamos a travessia. Mas, algo mais aconteceu. Até aquela data eu e o Pablo éramos apenas conhecidos, ao partilhar uma situação extrema daquela, nos tornamos grandes amigos. É, a montanha, e essas experiências, tem a capacidade de nos proporcionar isso. 

Eu e Pablo vínhamos tentando realizar essa travessia novamente desde o ano passado. O sonho ainda estava vivo e no começo desse ano estabelecemos um data, convidamos os amigos e criamos um evento no facebook (engraçado como isso dá uma exposição as pessoas e acabam por deixar elas mais envolvidas...kkkk). Vários conhecidos passaram na configuração do grupo, mas, no final, sempre fica quem era pra estar. O grupo fechou com Eu, Pablo, Daniel Franquin, Renato Dantas, Vinícius e Renata, pessoas especiais. 

O programado era entrarmos cedo na trilha, pois assim teríamos uma margem para o cair da noite e também curtiríamos o nascer do sol de cima da serra. As 5h35 começamos a trilha com um frio ameno, ainda, o céu aberto e muita empolgação. A caminhada seguia num ritmo bom, na primeira subida, o sol nascia no horizonte atrás da Serra do Mar, algumas nuvens  já ficavam abaixo de nós. Com uma 1h45 chegamos no primeiro cume do dia, Alto do Capim Amarelo. Ao mesmo tempo que ganhávamos altitude, entrávamos no meio de uma nuvem gelada, fria e úmida, a visibilidade alcançava meros 10m, no máximo. Essa foi a paisagem de 90% da trilha. O corpo molhado endurecia as pernas e as deixavam meio "bobas", com a precisão comprometida, mas, ao mesmo tempo, não nos deixava parar. Com 5 horas de trilha fizemos cume no Pedra da Mina (2.798,39 m de altitude, a quinta montanha mais alta do pais).

Tudo estava perfeito, seguíamos num bom ritmo, entretanto sem emoção não tem graça, né?! Serra Fina é Serra Fina e deve ser respeitada. Mais uma vez ela teimava em nos ensinar a não substima-la. Ao chegar no cume, estávamos todos alegres, conversando e rindo quando percebemos que o Renato não estava entre nós. Todos se entreolharam e surgiu a pergunta: quem o viu por último? de pronto respondi que o tinha vista a pouco menos de 1km do cume, ou seja, bem próximo. Descemos um pouco e não o encontramos. Toda a perfeição que estava rolando começou a virar um filme de terror regado a um vento congelante e ensurdecedor. Nem a visibilidade, nem os gritos, nos ajudaria a encontra-lo. 

A primeira hipótese era que ele poderia ter passado sem nos perceber escondidos atrás do muro de pedra que ajuda a evitar o vento. Descemos até o vale do Ruah, logo abaixo da Pedra da Mina, e não o encontramos. Paramos e fizemos uma rápida reunião para traçar os planos da busca. Em minutos a conversa se desencadeia em acusações e os ânimos ficam alterados. Entretanto, a necessidade de agir rápido inibi que a alteração chega as vias de fato. Subimos novamente, eu e o Daniel, a Pedra da Mina. O desespero era visível em nossas faces, um filme passava na minha cabeça com as recordações do sofrimento que tinha passado naquela montanha. Mas, naquela oportunidade, eu estava com o Pablo e éramos dois caras com "alguma" experiência de montanha. Renato, até onde sabíamos, tinha pouca noção... O desespero aumenta a velocidade, rápido chegamos no cume. Daniel desviou sua rota levemente para direita, na subida, a fim de fazer uma varredura, e eu segui pela via normal. Ao chegar no cume encontrei Renato deitado. Foi um sonho, por momentos pensei que aquela montanha era almadiçoada pra mim. Ele estava sereno nos esperando. Na subida, ao ficar para trás, decidiu nos esperar em um totem mais abaixo do cume, com medo de seguir e errar. Como o frio estava muito intenso, depois de um tempo, resolveu subir, para melhor se abrigar. Deu uma demonstração de que, apesar da pouca experiência, é um cara safo – suas decisões foram muito corretas.

Como se percebe foi uma série de erros: nós que o deixamos para trás; ele que não subiu para o cume; e a desatenção geral. Ora, mas duas lições positivas ficaram, também: nunca mais seremos desatentos com uma pessoa que está conosco; ele saiu mais homem e experiente dali. Com essa brincadeira, acabamos perdendo quase duas horas... O estresse foi resolvido entre as duas partes, num momento fair play, chutando a bola para a lateral, mostrando que a humildade é a primeira coisa que a montanha nos retribui como lição, sempre. 

Voltamos para a nossa travessia, que seguia da mesma forma – gelada, molhada e sem visibilidade. A falta de visão da paisagem não só dificulta a navegação, mas nos coloca num estado de introspeção tão forte, que as vezes temos a sensação de estar numa sessão de terapia. Seus pensamentos, suas dúvidas, seus medos, vem a tona de uma forma brutal e profunda. A vontade de chegar, de comer uma comida quente, um banho, uma roupa seca, valem mais que qualquer milhão que puderem de oferecer. É nesse momento que percebemos o quão pequeninos somos e, sobretudo, como as pequenas coisas da nossa vida são tão importantes. Esse estado que os exploradores do deserto, os alpinistas extremos, os navegadores do passado, relatam a alucinação de verem e escutarem seres, terem ilusões visuais ou mesmo acharem que estão ficando loucos. As vezes, quando me encontro nesse estado, sinto como se tivessem me colocado no modo retardado. Sabe aquela função que tem no celular, "modo avião"? comigo acontece algo próximo, para que eu possa "funcionar" em situações assim, minha cabeça começa a ficar meio doida, dando vontade de gritar e cantando músicas, no mínimo, bizarras! rsrsrs. Bom, cada um com sua saída, né?!

Andávamos e esperávamos ansiosamente para chegar no final. A cada subida eu perguntava a Pablo quanto faltava, que nesse momento trabalhava no modo "eremita-egocentrico-introspectivo" de forma plena, o que impossibilitava ele dar uma simples resposta como: "sim Pedro, estamos no Cupim". Mas tinha seus motivos, sua mente trabalhava em conjunto com o fundo de sua alma, seus conflitos estavam ali para serem confrontados e curados. Ele, como um grande homem, se esforçava para conseguir, na medida do possível, fazer daquele exercício físico um exercício espiritual. De forma oposta estava Renata, rindo, se divertindo com cada piada sem graça que falávamos, a única menina (meio Barbie Offroad, kkkk) no meio de marmanjos. Ela quebrava qualquer preconceito sobre a força e a capacidade feminina, uma verdadeira guerreira. Daniel, seguia atrás, sempre atento a qualquer erro de caminho, como bom navegador que é, cuidando de seu pupilo Renato, que seguia sereno e no ritmo, mesmo depois do susto. Vinícius parecia um Buda, de mais de um metro e oitenta, com jeito troglodita e a força física de um touro. Bom, éramos uma boa equipe!

Com 13 horas de caminhada chegamos na beira do asfalto onde a Kombi nos esperava, todos bem fisicamente e felizes pelo feito. Com os descontos do tempo, que perdemos procurando Renato, acabamos por considerar que fizemos a travessia em 11h30, nada mal!  A volta no asfalto foi tranquila, chegamos no nosso Hostel (Harpia). 

Na postagem passada, sobre a Serra Fina, eu tinha feito um duro comentário ao Refugio Serra Fina, por nos ter negado um prato de comida na saída da trilha com o pretexto de que não estávamos hospedados lá – cada um com a sua metodologia de trabalho, mas, por favor, gentileza sempre! Quanto ao Hostel Harpia, digamos, é o simétrico oposto. Quem pretende fazer essa travessia, ou mesmo quem já fez, deve passar por lá, você se sente no ponto de reunião das pessoas que gostam da montanha. O Harpia é comandado por Rodolfo e Will, dois caras sensaionais que vivem, literalmente, das montanhas. A simplicidade, o estilo colonial da casa, o café quente na beira do fogão a lenha, o papo com quem entende vale qualquer hospedagem "mais chic", isso se você for desses que gosta, de fato, do mato!


Lembram que comecei a postagem com as indagações que o poema de Fernando Pessoa pode nos suscitar sobre a travessia? a elas retorno. A travessia, me parece, não é aquela que fazemos físicamente, a saber, cruzar a Serra a Fina. Mas, sobretudo, a travessia que fazemos dentro nós mesmo, no âmago de nossa alma, essa forma de introspecção que andando na montanha, passando frio, nos expondo em situações extremas, acaba por nos devolver a possibilidade de encontro com nós mesmo. Não é atoa que aqueles versos foram escritos pelo poeta do desassossego, afinal temos em comum com ele essa alma inquieta. Como o próprio poeta nos lembrou, "Viver não é preciso, navegar sim".

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Chauás 300km/Petar: a conquista de um sonho

         Feriado de 7 de setembro se aproximando, malas no carro, bike pendurada atrás, mochila de rango, reggae tocando no som. Bom, a configuração normal de quem está indo passar o feriado numa praia relaxando, pegando um sol e tomando cerveja com os amigos. Mas não era nosso caso. Iríamos dirigir por mil kilometros, de Ouro Preto até o interior sul de São Paulo, para fazer muita força e sofrer muito. A cidade que nos esperava era Iporanga, entrada para o parque do Petar: um conjunto de cavernas magníficos onde estalagmites e estalactites são tão normais como as bromélias. 

           Estava realizando um sonho, competir o Chauás 300km. Seria a primeira vez que eu e o Hugo iríamos fazer uma prova expedicionária de verdade. E, também, pela primeira vez contaríamos com uma equipe de apoio. Levei minha namorada, Mariana, e um amigo, Giordano, para fazer nosso apoio.  

            A prova foi dividida em 178km de bike, 82km de remo e 30 km de trekking. É necessário notar que apesar da pouca distância do trekking ele não seria nada fácil. Os organizadores jogaram as equipes para atravessar a Trans-Petar de noite. Dando uma vasculhada na internet encontrei uma dissertação de mestrado sobre corrida de aventura, em antropologia, que reportava o seguinte trecho sobre a Trans-Petar:


"Havia uma grande etapa de trekking (60km) que percorria uma antiga trilha do parque conhecida como "trans-Petar". Nessa etapa da corrida algumas equipes tiveram problemas para se deslocar e encontrar o caminho correto no meio da Mata Atlântica. Essas equipes ficaram perdidas por algumas horas (aproximadamente 36 horas). Duas equipes tiveram que ser resgatadas com uso de helicóptero pela equipe de socorro do exército. Apesar de ficarem perdidos na floresta, os integrantes das equipes não sofreram qualquer tipo de lesão grave. Esse acontecimento demonstrou a inexperiência de algumas equipes com relação à orientação no interior da mata. Por outro lado, a equipe da Nova Zelândia surpreendeu os organizadores da corrida, concluindo esse percurso de trekking com orientação em apenas oito horas".  (Ferreira, 2003:40)

                Ou seja, teríamos, nada mais nada menos, que o mítico trecho da Trans-Petar que na EMA 99 aniquilou as equipes brasileiras. Mas os anos se passaram, as técnicas de navegação foram aprimoradas no Brasil e, hoje, temos muitas provas que nos colocam a prova a navegação. Estava nervoso pela Trans-Petar e, para piorar, os moradores locais faziam questão de enfatizar que a região é cheia de onça parda. Além de correr o risco de ficar perdido dentro de uma mata atlântica fechada, ainda corria o risco de ser mordido por onça. Quer aventura? Agora aguenta! 

             Largada foi dada com um pequeno trekking dando um desfile pela cidade. Em seguida pegamos as canoas canadenses e partimos para 26km de remo pelo rio Ribeira. Mal começou o remo e já viramos a canoa. Das primeiras posições que ocupávamos, em menos de meia hora, estávamos em último. A canoa virada pela quinta vez, o Hugo vai tentar entrar com pressa e, já estressado, tropeça na canoa e cai  de peito na praia do rio. Passa por nós os últimos colocados - uma canoa com três integrantes - a menina que fazia o leme não se controla e solta uma bela gargalhada daquela cena de dois patetas sem a mínima  técnica levando um verdadeira "surra". 
- kkkk, ainda bem que não somos os últimos mais!!  Completa ela. 

                 Sem problemas, a pressa era última coisa que tínhamos naquele momento. Antes de mais nada precisávamos terminar aquele remo. Aos poucos fomos pegando o jeito e buscando posições. Numa das corredeiras mais difíceis, tinha uma galera fazendo portagem, outras viradas e resolvi encarar. Passamos ilesos!

                   Transição rápida e pegamos a bike, nosso forte. O trecho era rápido, de asfalto e com pouca navegação. Socamos a bota e fomos buscando as equipes uma a uma. Chegamos na área de transição para iniciar o trekking. Nossa equipe de apoio estava perfeita com um miojo preparado. Transição rápida e saímos comendo ainda. A primeira parte do trecho era sem grandes dificuldades, mas já começou a selecionar a galera. Continuamos buscando as equipes e batemos no PC4, Núcleo Caboclos, 20 minutos atrás do primeiro pelotão e as três primeiras duplas empatadas: Harpya (nós), Santa Ritta e Field Power.

                 O staff nos alertou na saída: "agora começa a Chauás".  "Sem problemas", pensei comigo, "não preciso de pressa e estou aonde queria estar". Não era momento para medo, apenas calma e navegar direito. Saímos juntos, as três duplas, e íamos nos ajudando na navegação. Um pequeno erro, foi o maior acerto de nossas vidas. Pegamos uma trilha de palmiteiro que juntava mais a frente com a trilha principal e dava um bom corte de caminho. Em vinte minutos estávamos encontrando de frente com a galera que vinha na ponteira da prova - Lobo-Guará, Pedro Pinheiro e Rodrigo Koke. Quando percebemos já tínhamos passado a entrada da trilha que deveríamos pegar. O bom é que lembrávamos o local, pois tinha uma arvore centenária bem onde ela começava.

                 Montamos uma verdadeira equipe de navegação, onde todos colaboravam: um ia a frente de batedor procurando a trilha, outra ficava atrás conferindo o azimute, outro calculava o tempo. Assim andávamos o tempo orientado e com um calculo bem preciso da nossa localização e de quanto tempo gastaríamos para chegar em cada entrada. Foi perfeito! A meia noite, com 7 horas de trekking, saímos no Núcleo Santana para encontrar nossos apoios e dar um susto neles. Lucas, ainda com um copo de vinho na mão, não acreditava que tínhamos conseguido sair tão cedo daquela floresta. Eu feliz por não ter encontrado nenhuma onça.

             Saímos numa bike rápida para pegar o remo outra vez. Ganhamos alguns minutos de vantagem para os outros concorrentes neste trecho. Entretanto, um remo noturno e perigoso nos aguardava. Eu e Hugo estavamos tensos e fomos na manha. Cada baralho de corredeira deixava os nervos a flor da pele e não enxergávamos nada. Apesar de todo cuidado, lá pelas tantas, viramos a canoa. Foi o maior sufoco para conseguir chegar a beira do rio e desvirar. Para compensar, fomos recompensados com um nascer alucinando que deixava a água parecendo um espelho luminoso de cor metálica e purpura. 

              Na metade do trecho fomos alcançados pela dupla Santa Ritta que vinha fazendo um remo bem melhor que nós dois. Os 56 km de remada eram intermináveis. Cada curva do rio parecia uma eternidade a se cumprir e as dores já se espalhavam por todo o corpo. Nos últimos três kilometros, a cada praia, parávamos para esticar as pernas. 

           Entregamos o remo as 10 horas da manhã, 20 minutos atrás da dupla Santa Ritta e uns 40 minutos atrás de Pedro Pinheiro. Comemos um macarrão maravilhoso e saímos para o último trecho da prova, 100km de bike. Estava um calor de matar e tínhamos apenas uma estratégia: fazer o máximo de força para conseguir tirar a diferença para dupla Santa Ritta antes da trilha que tinha na metade do caminho; lá seria bem dificil reduzir a diferença. Com 30km de pedal passamos por eles numa subida, estava um calor de matar e todo mundo estava sofrendo.

           Assinamos o último PC bem na entrada da trilha. Quando avistamos a frente vimos que teriamos uma "pedrada" para superar. A trilha, ou melhor, o complexo de erosões que os jipeiros produziram, em mais de sua metade era impossível de pedalar. E, para piorar, cruzamos com três jipes que no dia fizeram o favor de destruir mais o pouco que restava dela. Pensei comigo, "isso coisa do Lucas para nos fazer sofrer!" 

              Demoramos quase quatro horas para superar subidas intermináveis e descidas empurrando. Bem na saída da trilha avisto Pedro Pinheiro empurrando sua bike, ele tinha furado o pneu e estava sem bomba. Emprestei minha bomba para ele, estava passando muito mal, não conseguia comer mais nada que tinha na mochila. Ando um pouco e avisto uma família acampando a beira de um rio e fazendo churrasco. Não pensei duas vezes, parei e pedi para eles me venderem uns pães com carne e refrigerante. A mulher, assustada com aqueles caras parecendo alienígenas saindo do meio do mato e esfomeados, preparou três sanduíches e deu uma garrafinha de refri ainda. Foi um sonho!! 
                Com a energia revigorada e a fome saciada seguimos rumo a chegada. Era inacreditável estar concluindo umas das provas mais duras do Brasil em primeiro na categoria e na geral junto com Pedro Pinheiro. A chegada foi uma festa, com direito a garrafa de champanhe, cerveja, fotos e beijo da namorada. Concluímos a prova em 33 horas e meia e a previsão dos organizadores era de quarenta horas... Como Gerson da Santa Ritta falou a Lucas, "Desculpa aí o tempo pulverizado na transpetar, mas você queria o quê, um Lobo-Guará farejando, Harpya voando e Santa Ritta abençoando, tudo isso envolvido num campo de força do Field Power... rsss, só podia dar quebra de tempo!"

             Chauá é um papagaio em extinção que habita as regiões de florestas úmidas e primárias. Devido ao alto grau de desmatamento que se encontra a Mata Atlântica, cada vez torna-se mais díficil de ser visto, em seu habita natural, esse papagaio. Chauás 300km é uma prova duríssima organizada por Lucas e Fran, que segundo os próprios é para "Poucos e Loucos". Talvez sejamos poucos e loucos mesmo, uma raça em extinção neste mundo de mesmice, de competitividade estúpida, onde as pessoas - assim como aqueles jipeiros detonando as trilhas - pensam a natureza como algo a ser superado. Queremos é se integrar e não superar a natureza. Apenas uma total integração com o meio, se sentir confortável na mata fechada, faz passarmos ilesos por um desafio como esse. Esses poucos e loucos gostam é disso. Somos da turma de Jack Kerouac e não de Lance Armstrong. Deixo um trecho de On the Road para os "Poucos e Loucos": 

"(...) E eu me arrastei, como tenho feito toda a minha vida, indo atrás das pessoas que me interessam, porque os únicos que me interessam são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e não falam obviedades, mas queimam... queimam... queimam como fogos de artifício em meio à noite". 
  
             Para fechar queria agradecer ao Lucas e Fran e toda a galera envolvida na organização dessa prova maravilhosa e, principalmente, pelo Rock'n'roll em vez de tecno (kkkk). A cidade de Iporanga que nos recebeu de braços e natureza aberta. A minha namorada pelo carinho e o apoio dado durante a prova. Ao Giordano pelo amizade e o apoio. Meu treinador, Nenem, pela compreensão com minha disciplina às avessas. Ao projeto da UFF esporte, que sem a bolsa que me foi concedida não seria possível estar competindo este ano. Ao Hugo por topar essa idéia de retomar a equipe Harpya e ser um puta atleta, valeu irmão! E a todos que fizeram a prova com esse espirito que a Chauás nos solicitou!!

Valeu demais galera!!
Abraços,

Pedro Alex

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Expedição Terra de Gigantes: começando na tradição

        Desde que comecei a fazer corrida de aventura tinha muita vontade de competir em quarteto, afinal é forma "tradicional". Fui convidado pelo Papaventuras, um quarteto muito especial comandado pelo capitão Valmir e sua esposa Rose e Pedro Pinheiro, para competir a Expedição Terra de Gigantes ao lado deles. O palco Penedo, um vilarejo, caracterizado pela colonização finlandesa, encravado no meio das serras cariocas. Bom, só posso dizer que foi bem especial. 
            A largada foi dada as 8 da manhã com um sol lindo, algumas equipes chegando atrasadas e uma forte descida, fazendo com que o ritmo já fosse alucinante desde da largada. A equipe tinha uma estratégia a seguir, que já é uma caracteristica do Papaventuras: um ritmo constante e uma navegação precisa. Logo no inicio Pedro Pinheiro dava sinais de que não estava bem (o cara tinha sofrido um acidente de moto uma semana antes e estava com a costela trincada e competindo a base de analgésicos...), peguei sua mochila para facilitar seus movimentos. 
         Começamos a bike e pareciam que os problemas de Pedro tinham se resolvido. O ritmo estava bom, tinhamos vários quartetos ao nosso lado e Valmir agia como um buda, sem dar a mínima bola para que posição estavamos. Muito interessante a forma como ele conduz a equipe: uma concentração total na navegação e nas pessoas do quarteto, sem se importar com a posição. Começou um sequência de duras subidas e um calor absurdo. Várias equipes estavam sofrendo com o calor e a nossa não era diferente. Pedro começou a ter hipertremia (quando a temperatura do corpo fica muito quente e mecanismo do corpo não consegue reagir), paravamos a todo instante na subida para ele se recuperar. Eu carregava a mochila de Rose e Valmir empurrava a bike de Pedro para facilitar sua locomoção. No alto da subida um presente de Deus: uma mangueira que serviu para um delicioso banho para espantar o calor. Pedro apresentou uma melhora e apreçamos nosso passo, tinhamos que passar no corte para seguir na prova.
Pico Pedra Selada ao fundo.
         Entregamos a bike uma hora antes do corte, nada mal, mas nos esperava uma subida de quase mil metros de desnível. Saímos num passo constante e fomos acertando bem o caminho. A subida era realmente muito dura, uma trilha exposta, por onde desmatamento avançou para servir de pasto, para em seguida embrenhar dentro de uma mata fechada. Conseguimos ganhar uma posição que foi providencial. No cume uma recompensa, visão panorâmica de 360º graus no alto da Pedra Selada com direito a um rapel de tirar o fôlego.
      Ao descermos a serra tinhamos um monótono estradão para chegar no remo. É imprecionante como é chato andar sem navegação e em estradão, não acaba nunca!! Chegamos no remo, comemos bem, colocamos roupas de frio pois a noite caiu e com ela o frio. O remo era num rio de aguas límpidas e sinuoso. A temperatura ambiente era mais baixa que da água fazendo com que saísse um "vapor gelado" que dificultava a visão e abaixava a temperatura. Já rezava pelo final do remo quando avistamos a área de transição. Pedro se recuperava e parecia que tudo começava a melhorar. Ledo engano.
            Do extremo calor ao meio dia fomos ao frio de matar a noite. Comecei a sofrer muito com o frio ao sair do rio os papéis se inverteram: eu passava mal e Pedro me ajudava. O frio fazia eu ter delírios e um sono que quase me derrubava, literalmente, no chão. Era um pequeno trekking, aproximadamente 6km, até área de transição, mas parecia uma eternidade. Meus pensamentos só conseguiam visualizar a área de transição com uma grande fogueira para me aquecer. Ledo engano 2!! Quando chegamos lá encontramos apenas duas pessoas responsáveis pelo PC com o mesmo frio que nós, entretanto secos. Colocamos todas nossas roupas de frio e partimos para o último MTB para terminar a prova.
Subida final para chegada.
         Quando plotamos nossa rota no mapa, guiados pela primieras informações da prova, não demos conta que o trecho final era de 100km, na nossa cabeça era apenas 50km... Por um lado foi bom, ludibrio nossa mente para a pancada final de pedal. O sono começou a atacar todos da equipe, eu quase cai da bike após uma "pescada" e Pedro caiu. O negócio estava feio, a única esperança era os raios do sol para tirar o sono, mas faltava 30 minutos. Paramos para comer e eis que surge um quarteto, o Enigma, e nos ultrapassa.
         Foi como um tapa de luva na cara que nos acordou na hora. Um pouco mais a frente encostamos neles de novo, bem em uma longa e dura subida. Valmir ia frente, eu um pouco mais atrás e Pedro também. Evitava olhar para o final da subida pela sua inclinação e extensão quando escuto um barulho de pneus tracionando no cascalho solto e nos ultrapassando, quando olho para o lado é a menina que corre no Enigma. Não contente em subir forte ela deu uma verdadeira "chapuletada" na nossa cabeça. Bom, para nossa sorte, alguém do Enigma enfrentava problemas. 
         Animos recuperados, junto da posição, e com os primeiros raios do sol, o sono passou. A prova parecia que tinha começado para todos nós naquele momento. Valmir como um verdadeiro perseguidor falava, "Esses rastros de pneus estão muito frescos, estou vendo a hora que avistaremos outro quarteto!" Quando picotamos o último PC não deu outra, avistamos o quarteto Curtlo Lobo-Guará. Num final emocionante ganhamos uma posição. Um trecho de asfalto nos levava de volta ao distrito da Serra do Alambari, onde tinhamos largado. Entretanto, tinhamos uma subida final impiedosa, chata e longa para superar. 
Todos juntos cruzando o pórtico.
         Chegamos com 26 horas de prova a apenas 15 minutos do 5º colocado, a Xingu, e nos colocando entre os melhores quartetos do país. Sorrisos na face expressavam a satisfação de terminar bem uma prova dura que conseguiu nos levar aos extremos que buscamos. Para mim foi uma satisfação sem palavras competir ao lado da família Papaventuras, uma verdadeira aula de espírito de equipe. Quarteto, com certeza, é a essência da corrida de aventura, e olha que a maioria das minha provas competi na solo. Acho que no quarteto conseguimos trabalhar aquilo de máximo que este esporte tem a nos oferecer: situações limítrofes com o espírito de equipe. Em equipe você tem que aprender ajudar e a respeitar seu companheiro(a), pois a equipe é UM, formado por quatro. Acho que os poucos estou me formando como um corredor de corrida de aventura, como uma grande lição do Capitão Valmir, "corredor de aventura é aquele que se sente confortável em situações adversas". Ora, acho que é isso que busco aprender, para as provas e para vida.
Abraços a todos,

Pedro Alex

segunda-feira, 23 de julho de 2012

2º etapa Brou Aventuras: "O Velho e o Mar"

     Esta postagem será duas em um: um relato da minha participação na segunda etapa da Brou; e uma resenha do livro O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway. Pretendo demonstrar que o conto de Hemingway tem tudo a ver com o que ocorreu comigo nesta prova. Bom, provas não são apenas desafios físicos, mas nos remetem as nossas mais profundas experiências estéticas devido aos sentimentos produzidos durante o desafio.
     A cidade de Boa Esperança, as margens da represa de Furnas, foi o local escolhido pela organização para a segunda etapa. Uma prova longa e bem dinâmica, muito remo e muita subida, um visual de tirar o fôlego, mesmo para os olhos mais acostumados com as belezas mineiras. Às 6 horas da manhã, pontualmente, largamos com um frio de cortar e com os primeiros raios do sol despontando no horizonte. Uma neblina dificultava a visibilidade da lagoa fazendo com que algumas equipes tivessem problemas para localizar a entrada que levava ao primeiro PC. Com um remo defasado pela falta de treinamento, segui num ritmo tranquilo. Com exatamente três horas saí da água, as pernas estavam duras como concreto, mas teria um pedalada para aquecer o corpo. 
    O primeiro trecho de mountain bike nos levava para o alto da serra onde boa parte da prova se desenrolaria. Um erro de interpretação do mapa me fez perder tempo me jogando para ultima colocação da categoria solo. Erro concertado, comecei a fazer uma prova de recuperação. Três adversários erraram de uma só vez fazendo com que eu saltasse da quinta para a segunda colocação, com um Humberto Couto seguindo na liderança 40 minutos na minha frente. Transições rápidas, precisão na navegação noturna e o preparo físico em dia me facilitaram entrar para a última pernada da prova na segunda colocação e com uma boa vantagem dos concorrentes que vinham atrás. Eram 22km de remo noturno, com um frio de 7 graus no marcador (ou seja, sensação térmica beirando a zero) que me esperavam. 
   Saí num ritmo tranquilo porém constante, não podia quebrar. Com dois kilometros de remada tinhamos que fazer uma portagem para atravesar uma barragem. Chegando no local indicado pela organização me deparo com Humberto, que tinha deixado sua mochila cair e voltará para busca-la. Saímos juntos e Humberto apagou sua head-lamp, pensei "olha o cara, não quer que o veja durante o remo!". Mal sabia eu que isso é uma técnica. Quando se rema em represas ou lagoas a noite, você apaga a lanterna e os olhos acostumam com a visão noturna possibilitando visualizar o relevo; já com a lanterna ligada é impossível ver qualquer coisa além das luzes de casas. Erros custam caros!! 
    Como tinha visualizado no mapa, bastava eu remar um pouco para o meio da represa e colocar um azimute de norte que bateria de frente no ponto que iria entrar para pegar o ultimo Pc. Esqueci de descontar a declinação magnética e passei 10 km da entrada do pc... Aqui entra o conto de Hemingway.
    Ernest Hemingway é um escritor norte americano que fez parte da "geração perdida", um grupo de jovens escritores que se reuniram em Paris ao redor de Gertrude Stein. Ele foi contemplado com um personagem no filme Meia-Noite em Paris (2011) de Woody Allen, fazendo com que meu interesse por seus livros fosse despertado. O Velho e o Mar é um de seus principais livros, dando ao autor, em 1954, o  Prêmio Nobel da literatura. Bom, o que um autor surrealista tem a ver com aventuras? Tudo, digamos.
Este livro narra a história de um velho pescador cubano, Santiago, que a três meses não pesca um peixe, já considerado um azarão. Saindo sozinho para pescar, todos os dias, Santiago sempre acredita na sua capacidade e tem uma fé inabalável de que irá pescar um grande peixe. Ele tinha um jovem garoto como ajudante que o admira muito, mas devido a seu azar a familia do garoto fez com trocasse de barco. Santigo consegue fisgar um grande peixe espada, de aproximadamente 5 metros de comprimento, e passa dois longos dias e noites lutando contra todas as adversidade e brigando para matar o peixe. Nessa interminável luta, Santiago se vê a volta pela solidão e por seus pensamentos. Após conseguir matar o peixe ele o prende na embarcação, entretanto no caminho de volta é atacado por tubarões chegando a costa apenas com a espinha do peixe, o maior já visto pelos pescadores locais. 
      A moral da história, como quase todos os contos de Hemingway, é esta crença na vida e na vontade de viver acima de tudo, encarando-a como um grande desafio que com uma força de guerreiro não se deve esmorecer aos desafios. O livro é um verdadeiro mito de sujeitos que com simplicidade, fé e coragem gostam de viver intensamente, sem nos remeter aquele final feliz sempre espererados de romances pobres. É um conto da vida como ela é!
     Voltando a prova, quando notei que tinha errado já tinha remado por 3 horas e meia represa abaixo e estava bem debilitado. Parei para dormir e de manhã peguei o rumo de volta. Com a cabeça bem abalada visualizei pela manhã o local que deveria ter entrado, mas com medo do PC não estar mais lá rumei direto para a chegada. Ao chegar fui informado que Humberto Couto tinha retornado sem pegar o PC; outro atleta solo, Matheus Alves, que vinha fazendo uma bela prova ficou bem abalado com um erro que cometeu no último trecho do MTB e não saiu para remar; apenas Marcelo Santos conseguiu pegar o PC, na solo, mostrando por que é o atual líder do ranking brasileiro. 
        Ora, assim como Santiago me senti ao término da prova. Tinha, realmente lutado contra todas as adversidades durante o percurso, posso dizer que 85% da prova fiz sozinho, apenas acompanhado pelos meus pensamentos (que não são poucos nem claros nestes momentos) e a noite pelas estrelas que davam um verdadeiro show de luz. A despeito de todo o azar e falta de experiência venho melhorando a cada prova e com o tempo creio que chegarei lá. Bom, se não chegar também não tem problema, o pódio é apenas alimento da nossa vaidade, digamos nossa maior vaidade como atleta. Mas, fazer uma prova magnífica em meio a natureza como esta, continuar a viver a vida intensamente e nunca perder a fé é sempre meu maior objetivo!
Abraços a Todos!

Pedro Alex

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Resenha do livro "No teto do mundo": com que medimos a grandeza de um homem?




                Nos momentos que não estou movimentando o físico (e nem estudando), gosto da possibilidade de “viajar” com a literatura. Falam em cultura de montanha referindo-se às práticas de vida adotadas pelos amantes das encostas escarpadas. Entretanto existe uma outra 'cultura de montanha' que é um hábito antigo desde os tempos dos primeiros expedicionários: escrever sobre as experiências vividas. Além das realizações físicas, as grande aventuras sempre envolvem uma certa dose de questionamentos que nos remetem às nossas mais profundas filosofias.  Um bom livro é como uma boa viagem: consegue reproduzir no seu imaginário aquelas experiências que o narrador viveu. Quanto mais nos aproxima dos sentimentos, dos gostos, dos cheiros, das cores, mais consegue nos transportar para dentro daquele universo e, além do mais, nos da aquela vontade (ou angústia) de nós mesmo provar aquilo que outro provou.


            Assim que vejo o livro recém publicado No teto do mundo (2011) de Rodrigo Raineri e Diogo Schelp. Encontro primoroso entre um aventureiro, suas vivências e um excelente escritor que consegue dar uma linha prazerosa  de leitura a narrativa. Com um vocabulário simples, analogias interessantes que são da nossa cultural geral, o texto se desenvolve de forma brilhante fazendo o leitor se sentir como um obeso insaciável querendo, sem limites, comer o último M&M's do pacote. Será uma febre do cume? Algo do tipo...

            Rodrigo Raineri é um escalador brasileiro com um currículo de alta montanha de dar inveja a grandes escaladores internacionais. Teve seu talento reconhecido após escalar a temida face sul do Alconcaguá na companhia de seu (finado) amigo Victor Negrete, considerada umas das vias mais difíceis e arriscadas do mundo. Também passou quatro expedições em busca de fazer cume no pico mais alto do planeta e, no caminho, perdeu seu maior parceiro. Conseguiu tal feita por duas vezes (2008 e 2011), se não bastasse agora tenta saltar de parapente do cume do Everest. Desistiu de uma vida segura oferecida por um trabalho convencional para viver seu sonho. Sua trajetória é digna de filme, mas foi perpetuada neste primoroso livro.  Como lembrou nosso grande Guimarães Rosa “ Agente vive é para provar que viveu”, faz jus a vida desse homem.

            Com um senso de prudência espetacular, Rodrigo Raineri, mostra que se expor à grandes aventuras não é um ato inconsequente de vaidade dentre seus pares e da grande mídia, mas um jogo de conquista que envolve a relação do montanhista consigo mesmo e uma espécie de namoro com a montanha. No final não há vitórias, mas relações entre o homem e a montanha, um caminho duplo de ida e volta. Livro que nos remete a pensar, por que vamos a estes lugares? Por que temos essa necessidade de passarmos tão perto da morte? (E olha, ele passou perto dela um par de vezes: através dos corpos cristalizados na subida do Alconcaguá e do Everest e perdeu seu grande amigo e parceiro de escalada). O livro não tenta dar respostas a estas perguntas e nem os eventos trágicos foram suficientes para freiar a motivação desse aventureiro.

             O caminho é sem retorno, a montanha já é parte do seu ser, uma necessidade imanente. Isso transparece de forma bela pelas linhas. A minúcia da organização das expedições demonstra, a despeito de todo desejo de cume, a vontade de viver. A narrativa não respeita a cronologia das empreitadas. Como uma mente em ação, o texto vai e volta nas expedições realizadas dando uma linha aos temas que os capítulos descrevem conduzindo o leitor ao âmago dos questionamentos sofridos por ele. Mais que um super-homem indo em busca de um grande feito, Rodrigo (se permite a intimidade) mostra-se como um sujeito comum, tão forte e tão frágil, cheio de dúvidas e medos, mas com um força incrível para desafiá-los. 

            Assim como a foto do cume que nos faz querer ir lá, deixo um trecho para aguçar a vontade da leitura.



“Olhei ao meu redor. Podia avistar os limites do planeta, longe, muito longe. O cume do Everest é uma plataforma levemente abaulada, de, no máximo, 20 metros de largura e uns 50 metros de comprimento, que acompanha o declive da montanha. Em alguns pontos há neve, em outros, rocha aparente. Simples assim. Incrível o que se é capaz de enfrentar apenas para ter a satisfação de estar ali. O homem é do tamanho dos seus sonhos.”



            Boa Viagem!







RAINERI, Rodrigo, 1969. No teto do mundo / Rodrigo Raineri com Diogo Shelp. São Paulo: Leya, 2011. 272 p.
            








        

domingo, 17 de junho de 2012

Copa Brasil de Corrida de Aventura - Vitória-ES



        Feriado de Corpus Christis e uma programação bem empolgante, competir o primeiro campeonato brasileiro supervisionado pela recém criada confederação brasileira de CA. O evento foi um espetáculo e nos apresentou, mesmo embaixo de chuva, as belezas da região litorânea e serrana do Espirito Santo.
    A organização foi excelente e nos proporcionou, além de uma bela prova, uma verdadeira reunião entre os amantes da corrida de aventura. Sem nenhum custo a prova se encarregou desde a logística completa de equipamentos e pessoas como da hospedagem, diga-se de passagem, excelente! Um evento e tanto!
           A prova era pra ser realizada exclusivamente na modalidade dos quartetos, mas no final acabou incluindo as duplas. Bom, contatei meu amigo Hugo e formamos a Dupla Harpya. Minhas ultimas provas tenho disputado na categoria solo e, apesar de gostar dos desafios que solo proporciona, correr em dupla é uma experiência interessante e bem mais segura. 
Estávamos fazendo uma prova excelente, andando na frente as primeiras pernadas, chegando a liderar a geral e a categoria. Uma série de erros na navegação noturna fez com que caíssemos da primeira para a quarta colocação. Tudo bem, esse é o risco que corremos na navegação. Apesar de ter passado mal  e ficado perdido a noite toda, no dia seguinte, resolvemos completar a última parte da prova: 30km de remo! Foi ótimo remar por cinco horas rio abaixo e desembocar no encontro com o mar. 
           O mais importante desta prova foi perceber que fisicamente temos condições de andar com os melhores do Brasil. A navegação precisa ser aperfeiçoada, mas creio que em breve a Harpya pode nascer como mais um quarteto para disputar as grandes provas do Brasil. Um sonho que nasceu entre eu e o Marcus, que atualmente está se dedicando a vida profissional e não pode competir. Também tive o privilégio de competir com outro grande amigo, Felipe. O mais interessante é que todos nós somos amigos de faculdade e ex-alunos de republicas de Ouro Preto. Segundo conta a lenda, só pensamos em beber (bom, de vez quando... rsrs), mas também desenvolvemos valores importantes que são necessários na convivência: espirito de equipe e respeito mutuo. Valores estes essenciais para uma equipe de CA.  
          Harpya será uma equipe que, acima de tudo, tem por objetivo o prazer de estar entre os amigos em situações extremas no meio da natureza. As CA de quartetos e duplas são um palco perfeito para essa reunião, mas outros projetos não competitivos também estão nos planos. Fazemos o que fazemos para vivermos felizes, pois não temos outra forma de viver. Hoje em dia, que guerreiros não gostam de guerra com mortes (alguns...), guerreamos com nós mesmos para sermos pessoas melhores. Harpya 4ever!!

domingo, 13 de maio de 2012

Travessia Serra Fina: cume Pedra da Mina

         Quinta-feira dia 26 de abril, estou no facebook meia-noite conversando com Pablo (Bulcciarelli) sobre a travessia da Serra dos Orgãos que estamos programando para fazer no primeiro final de semana de junho. Papo vai papo vêm, detalhes da travessia discutidos, pergunto a Pablo como estão os preparativos já que no outro dia de manhã ele partiria para tentar fazer a travessia da Serra Fina sozinho e um único tiro (geralmente as pessoas demoram três dias!). Em 15 minutos de conversa ele consegue me convencer a ir acompanha-lo. Na sexta cedo comprei as comidas e as 16:00 já estava no ônibus que vai para Guaratinguetá, onde eu iria saltar no Graal Três Garças e Pablo estaria me esperando.
Mapa com a capacidade dos acampamentos.
A Serra Fina é uma travessia em estilo alpino (você carrega todos seus apetrechos sem contar com serviços de camping ou qualquer tipo de hospedagem) na Serra da Mantiqueira, mas precisamente entre as cidades mineiras de Passa Quatro e Itamonte. Considerada umas das travessias mais bonita e difícil da América do Sul, é uma trilha que segue pela crista da serra passando por diversos picos, incluindo o Pedra Mina (5° maior do Brasil, 2.798 m) e o Três Estados (2.665 m). No horizonte, ao sul você visualiza o Vale do Paraíba, a norte Minas Gerais suas montanhas e picos e a leste o Pico Agulhas Negras no Rio de Janeiro. Alucinante!!!

Cheguei por volta das 9 da noite no Graal TrÊs Garças, Pablo já me esperava. De lá rumamos para a Base de Marins, onde pousaríamos está noite na casa do Miltão (Milton Gouvêa). Ficou combinado com o Miltão que ele nos levaria a entrada da trilha e faria nosso resgate. Acordamos as 5 da manhã, uma neblina forte fazia gotejar pequenos pingos que me deixaram apreensivo, chuva não seria uma experiência legal acima de 2 mil metros de altitude e com vento. Tomamos o café da manhã no carro a caminho, as 7:40 da manhã começamos a trilha pela entrada da Toca do Lobo.

Eu e Pablo.
A primeira parte é uma longa e árdua subida 1000m de desnível. Estava uma neblina que impossibilitava ver o gigante que estávamos subindo, quando passamos a linha dos 2000 m acima do nível do mar ficamos a cima das nuvens, com sol e um visual incrível. Em duas horas estávamos no alto do Capim Amarelo, um dos primeiros lugares para acampar. Seguíamos com um tempo bem agradável e um sol que ajudava a secar a calça que já estava molhada pelo contato com o mato úmido. O ritmo estava ótimo e com pouca dificuldade estávamos encontrando a trilha, ora pelos totens deixados no caminho, ora pelo vão no meio do capim elefante.

A serra é realmente bem fina, tem momentos que você caminha pela crista onde largura dela não passa de 5 metros. Ao longe montanhas escarpadas se impõe fazendo um cenário sublime. No pé da subida para a Pedra da Mina começou um vento forte que nos obrigou a tirar o casaco da mochila. As 14:20 assinamos o livro de cume, a neblina baixou de novo.

É preciso fazer uma pausa e introduzir o leitor nos vários equívocos que cometemos nesta tentativa, que por pouco não resultou nestas matérias que jornal adora. Quando saímos para a travessia não levamos nenhum mapa para nos referenciar e nunca tínhamos estado lá. Estávamos nos orientando pelos picos, e quando assinamos o livro de cume da Pedra da Mina pensávamos que era o Três Estados, pois para nós era o maior pico nesta travessia. No relato a seguir que vou narrar está com os nomes de acordo de onde pensávamos que estavamos, tenha isso em mente ao ler.

Voltando. Descemos seguindo os totens de pedra, feliz tínhamos feito seis horas até os Três Estados, um tempo incrível. De acordo com nossos cálculos em duas horas estaríamos no carro, terminando a travessia. A trilha terminou num vale e tinha uns totens indicando a subida de uma costa de pedra a nossa frente. Seguimos os totens, literalmente no meio da neblina com visibilidade reduzida a meros 20 metros. Em 15 minutos fazíamos cume numa pequena montanha. Paramos e ligamos para o Miltão pedindo que fosse nos buscar, pois chegaríamos as 18:00 horas e não a meia-noite como combinado.
Pedra da Mina se impondo ao fundo.

Descemos esta montanha e nos deparamos com um vale recoberto por um grande charco cheio de capim elefante. Nem rastro de trilha e os totens tinham acabado no cume da montanha. Por duas horas ficamos tentando rasgar o capim elefante para encontrar a entrada da trilha. O Pablo desenvolveu uma verdadeira técnica de transpor o capim elefante, mergulho de peito nele! Rsrsrs. Estava dando desespero de ver aquela situação de ter que pular de peito para andar 5 metros.

Bem cansados resolvemos subir a montanha de novo e ver se não tínhamos perdido os totens mais acima. Subimos no cume e nada de totem para nenhum lado, apenas os que retornavam na trilha que tínhamos vindo. Vi uma trilha descendo a sul da montanha e desci para ver apara onde ia dar. 50 m a abaixo, bem na crista da montanha, tinha os destroços de um avião monomotor na serra. O Pablo ficou bem assustado e deu meia volta na hora. Voltamos e tentamos acessar a internet via celular para tentar encontrar alguma referencia. Estava ruim a conexão e descemos de novo para procurar trilha mais a baixo, pois o rumo da bússola indicava para lá.

Nada de trilha e a noite caiu. Pablo se recordou que no seu celular tinha um email que estava o relato de um cara que tinha feito à travessia. Abriu o email e de acordo com a narrativa o morro depois do Três Estados era o Morro dos Ivos, e o cara ainda falava que depois do cume tínhamos que pegar uma trilha a direita. “Porra Pablo”, falei, “é a trilha que estávamos descendo e que você quis voltar”. Ânimos tranquilizados subimos novamente e pegamos a trilha. Neste momento já ventava muito e a sensação térmica beirava os 0°C.

Acima das nuvens.
A trilha levava por uma curta aresta que dava num pequeno platô, em seguida ela acabava. Continuamos descendo pela encosta com uma escarpa gigantesca ao nosso lado intimidando qualquer mudança de rota. Segundo o relato, abaixo encontraríamos uma mata e a trilha ia por dentro dela. Nada de mata, apenas muito capim elefante e pouco progresso na distância percorrida. Aquela situação estava começando a ficar ruim.

 Depois de muito tentar encontrar a suposta trilha, bem esgotado, sugeri ao Pablo que parecemos e dormíssemos e pela manhã, com claridade, tentaríamos encontrar o caminho. O Pablo acatou a sugestão, e num pequeno colo da montanha tentamos descansar. Como pretendíamos fazer a travessia numa única investida fizemos a opção de ir ao estilo minimalista, ou seja, uma mochila de ataque com o mínimo de peso possível. Não tínhamos saco de dormir nem nada que pudéssemos nos abrigar. As rajadas de vento estavam castigando, embrenhávamos no capim para tentar nos esconder, em vão.

Virava de um lado me acomodava e conseguia relaxar, quando começava a cochilar era tomado por um frio que me fazia retomar o ritual: vira de lado, coloca as mãos entre as pernas para esquentar e procura um abrigo no capim para o pé. Este mesmo ritual se repetiu até as 3 manhã, que como um pesadelo algumas gotas bateram no capús do meu casaco. Não podia acreditar, estava chovendo, nãooo!!!! “Sentiu os pingos?” perguntei a Pablo, “Sim”, ele respondeu. Nenhuma palavra foi trocada mais, qualquer comentário poderia tirar a pouca força psicológica que ainda nos sustentava, sabíamos sem querer.

Três intermináveis horas nos castigaram até que a claridade irrompeu e permitiu a tentativa de alguns movimentos. Tremendo e com muito frio colocamos o tênis em baixo da chuva e começamos a odisseia de subir, mais uma vez, aquele pico. Impressionante, quando descemos não demos conta do tanto que estávamos expostos. Uma vez no cume, outra vez (o leitor já deve estar cansado deste cume, imagina nós lá!), descemos de novo para tentar encontrar a trilha mais abaixo. 

Nada de trilha e sobe para o cume outra vez. O frio começou a ficar insuportável e estávamos desesperados já, naquele estado que o raciocínio não está trabalhando no seu modo pleno. Liguei para a Bruna, uma amiga (e anja) minha, para ela tentar encontrar alguma referência. Passado alguns minutos ela retorna e tinha conseguido contatar o Marcos (desconhecido, gente boa que tentou nos ajudar de todo jeito. Inclusive ligou para Globo...). O Marcos me ligou e informou que tinha ligado para os bombeiros e que era para eu ligar e passar as referências.

Liguei e falei com um cabo (que não recordo o nome, mas que sou extremamente grato pela sua ajuda), como de praxe ele perguntou se estávamos com algum guia, se tínhamos GPS, se estávamos machucado, se tínhamos comida e se sabíamos voltar. As três primeiras respostas foram negativas e as duas últimas positivas. Bom, ele disse que se fosse nos resgatar demoraria 8 horas. Então era mais fácil voltarmos para trás, pois não estávamos nos Três Estados, mas na Pedra da Mina, onde tem um avião caído!

Neste instante que percebemos nosso erro e vimos o quanto fomos infantis de tentar fazer uma travessia desse porte sem cumprir o primeiro dos requisitos, o Mapa! De certa forma, era um pouco isso que queríamos fazer, encontrar o caminho no tato. Somos corredores de aventura e este tipo de desafio nos inspira, mas na Serra Fina a montanha mostrou quem manda e que erros podem ser fatais. Pensa bem, se alguém machucasse? Se fossemos picado por cobra? Qualquer outra eventualidade? O bombeiro está a 8 horas! Ali, é um dos lugares em que natureza manda com todo vigor sobre nossa pequenez humana.
Livro de cume no alto da Pedra da Mina.

Tem horas que o mais sábio é entender estes avisos, agradecer por estar tudo bem, agradecer por estar ali e voltar para traz. A sensação era de missão cumprida, pois tínhamos feito cume na Pedra Mina, exploramos bem um lado da serra e sabíamos o caminho certo agora. À volta foram longas 8 horas de caminhada, bem fadigados e comendo apenas barrinhas de cereais, não tínhamos mais nada.

As 18:30 chegamos na entrada da trilha onde o Miltão tinha nos deixado. Perto tem uma pousada bonita, nova, Pousada Serra Fina. Vínhamos à volta inteira sonhando em chegar lá para poder comprar um prato de comida quente. Batemos na porta e fomos atendidos friamente por uma funcionária. Explicamos nosso caso e perguntamos se não podia vender uma sopa para nós ou qualquer coisa quente para comer enquanto esperávamos nosso amigo. Ela entrou e foi consultar sua superior, passado alguns minutos voltou dizendo que só poderia nos servir alguma comida se nos hospedássemos lá, caso contrário não.

Tudo bem pode ser uma política da pousada não vender comida para não se transformar num restaurante. Mas nosso caso era daqueles em que as relações humanas que estão envolvidas, especialmente um sentimento que chamamos solidariedade. Sentimento este que é irradiado quando estamos em ambientes hostis. Estranho alguém que pretende ter como clientes sujeitos que querem estar perto da natureza, que querem, justamente, romper a frieza das relações distantes da cidade grande ter uma postura como essa. É um típico caso, aquele que vemos de monte na metrópole, onde as instituições se sobrepõem as relações humanas, onde em nome de uma empresa e de suas normas rompe este laço profundo da solidariedade. Uma pena!

Assinando o livro de cume.
Como um milagre, 5 minutos depois, o Miltão chegou. Fomos até a cidade de Piquete, tomamos um banho, comemos uma pizza e tomei com o Miltão um par de cervejas. Pablo me deixou no Graal novamente e peguei o ônibus para o Rio. No outro dia (30 de abril) eu tinha que qualificar meu projeto de mestrado... É assim mesmo, da montanha para vida acadêmica, do coração da natureza para o centro da cultura.

A despeito desse episódio da pousada, é muito feliz ver o estado da trilha e como está preservado o local. Não encontramos nenhum lixo, a não ser aqueles que são evidentemente não propositais. Pode ser que pela dificuldade dela não seja frequentada por entusiastas e fanfarrões, mas por aqueles que realmente amam as montanhas. Quem ama cuida! Em breve voltaremos para lá e completaremos este desafio de fazer esta travessia num único dia, aguardem.