Estive um tempo afastado do blog (me desculpe quem gosta de ler...), pois estava engajado em escrever meu mestrado, o que consumia toda minha inspiração. Para quem não sabe, sou um péssimo escritor, escrevo muito mal. Quando pensei em fazer esse blog ele me serviria para duas coisas: praticar mais a escrita, pois dependo dela já que meu "trabalho" é produzir textos oriundos de minhas pesquisas (estou concluindo meu mestrado em Antropologia); e, também, para compartilhar com meus amigos as minhas experiências de vida. Desde de minha última postagem muita coisa rolou: competi no interior de Minas em outubro de 2012, ficando em segundo; fiz uma viagem sensacional pelo nordeste, a rota das emoções (entre Maranhão e Ceará); voltei ao Chauás 300km, mas desta vez competindo em quarteto, conseguindo a 5º colocação; e competi em Guapé, MG, ganhando com Diogo, meu parceiro, uma prova de 115km. Mas, com tudo isso para inspirar, não me sobrou tempo pra escrever.
A escrita é uma forma de expressão especial. Ela consegue fazer – leitor e autor – mergulhar no fundo das nossas almas, buscando experiências pra traduzir em imagens sensoriais aquilo que foi vivido e experimentado em outro tempo e, as vezes, por outra pessoa. Para mim a escrita é sempre uma ficção, mesmo quando estou escrevendo um relato de um fato real. Digo isso, pois, as minhas recordações são como um filme seletivo, onírico, com conexões estranhas, as vezes. Mas, sobretudo, um filme real, no sentido de que é fruto de uma experiência vivida; ou melhor, uma experiência sem a qual eu não viveria, e não vivo. Assim vocês devem ler esse texto, ele tem algo meio alucinatório...
Da esquerda para a direita: Vinícius, Daniel, Pablo, Renata, Pedro e Renato. |
Quem leu o blog deve se recordar de uma postagem em que eu relatei a tentativa de fazer a Serra Fina, umas das Travessias mais duras e bonitas do país, em um tiro único. Naquela vez cometemos – eu e Pablo – um sequência de erros que nos colocou numa situação horrorosa, quase morremos. Passamos uma noite do inferno (apesar de não estar calor!), de muito frio e chuva. Conseguimos voltar, mas não terminamos a travessia. Mas, algo mais aconteceu. Até aquela data eu e o Pablo éramos apenas conhecidos, ao partilhar uma situação extrema daquela, nos tornamos grandes amigos. É, a montanha, e essas experiências, tem a capacidade de nos proporcionar isso.
Eu e Pablo vínhamos tentando realizar essa travessia novamente desde o ano passado. O sonho ainda estava vivo e no começo desse ano estabelecemos um data, convidamos os amigos e criamos um evento no facebook (engraçado como isso dá uma exposição as pessoas e acabam por deixar elas mais envolvidas...kkkk). Vários conhecidos passaram na configuração do grupo, mas, no final, sempre fica quem era pra estar. O grupo fechou com Eu, Pablo, Daniel Franquin, Renato Dantas, Vinícius e Renata, pessoas especiais.
O programado era entrarmos cedo na trilha, pois assim teríamos uma margem para o cair da noite e também curtiríamos o nascer do sol de cima da serra. As 5h35 começamos a trilha com um frio ameno, ainda, o céu aberto e muita empolgação. A caminhada seguia num ritmo bom, na primeira subida, o sol nascia no horizonte atrás da Serra do Mar, algumas nuvens já ficavam abaixo de nós. Com uma 1h45 chegamos no primeiro cume do dia, Alto do Capim Amarelo. Ao mesmo tempo que ganhávamos altitude, entrávamos no meio de uma nuvem gelada, fria e úmida, a visibilidade alcançava meros 10m, no máximo. Essa foi a paisagem de 90% da trilha. O corpo molhado endurecia as pernas e as deixavam meio "bobas", com a precisão comprometida, mas, ao mesmo tempo, não nos deixava parar. Com 5 horas de trilha fizemos cume no Pedra da Mina (2.798,39 m de altitude, a quinta montanha mais alta do pais).
Tudo estava perfeito, seguíamos num bom ritmo, entretanto sem emoção não tem graça, né?! Serra Fina é Serra Fina e deve ser respeitada. Mais uma vez ela teimava em nos ensinar a não substima-la. Ao chegar no cume, estávamos todos alegres, conversando e rindo quando percebemos que o Renato não estava entre nós. Todos se entreolharam e surgiu a pergunta: quem o viu por último? de pronto respondi que o tinha vista a pouco menos de 1km do cume, ou seja, bem próximo. Descemos um pouco e não o encontramos. Toda a perfeição que estava rolando começou a virar um filme de terror regado a um vento congelante e ensurdecedor. Nem a visibilidade, nem os gritos, nos ajudaria a encontra-lo.
A primeira hipótese era que ele poderia ter passado sem nos perceber escondidos atrás do muro de pedra que ajuda a evitar o vento. Descemos até o vale do Ruah, logo abaixo da Pedra da Mina, e não o encontramos. Paramos e fizemos uma rápida reunião para traçar os planos da busca. Em minutos a conversa se desencadeia em acusações e os ânimos ficam alterados. Entretanto, a necessidade de agir rápido inibi que a alteração chega as vias de fato. Subimos novamente, eu e o Daniel, a Pedra da Mina. O desespero era visível em nossas faces, um filme passava na minha cabeça com as recordações do sofrimento que tinha passado naquela montanha. Mas, naquela oportunidade, eu estava com o Pablo e éramos dois caras com "alguma" experiência de montanha. Renato, até onde sabíamos, tinha pouca noção... O desespero aumenta a velocidade, rápido chegamos no cume. Daniel desviou sua rota levemente para direita, na subida, a fim de fazer uma varredura, e eu segui pela via normal. Ao chegar no cume encontrei Renato deitado. Foi um sonho, por momentos pensei que aquela montanha era almadiçoada pra mim. Ele estava sereno nos esperando. Na subida, ao ficar para trás, decidiu nos esperar em um totem mais abaixo do cume, com medo de seguir e errar. Como o frio estava muito intenso, depois de um tempo, resolveu subir, para melhor se abrigar. Deu uma demonstração de que, apesar da pouca experiência, é um cara safo – suas decisões foram muito corretas.
Como se percebe foi uma série de erros: nós que o deixamos para trás; ele que não subiu para o cume; e a desatenção geral. Ora, mas duas lições positivas ficaram, também: nunca mais seremos desatentos com uma pessoa que está conosco; ele saiu mais homem e experiente dali. Com essa brincadeira, acabamos perdendo quase duas horas... O estresse foi resolvido entre as duas partes, num momento fair play, chutando a bola para a lateral, mostrando que a humildade é a primeira coisa que a montanha nos retribui como lição, sempre.
Voltamos para a nossa travessia, que seguia da mesma forma – gelada, molhada e sem visibilidade. A falta de visão da paisagem não só dificulta a navegação, mas nos coloca num estado de introspeção tão forte, que as vezes temos a sensação de estar numa sessão de terapia. Seus pensamentos, suas dúvidas, seus medos, vem a tona de uma forma brutal e profunda. A vontade de chegar, de comer uma comida quente, um banho, uma roupa seca, valem mais que qualquer milhão que puderem de oferecer. É nesse momento que percebemos o quão pequeninos somos e, sobretudo, como as pequenas coisas da nossa vida são tão importantes. Esse estado que os exploradores do deserto, os alpinistas extremos, os navegadores do passado, relatam a alucinação de verem e escutarem seres, terem ilusões visuais ou mesmo acharem que estão ficando loucos. As vezes, quando me encontro nesse estado, sinto como se tivessem me colocado no modo retardado. Sabe aquela função que tem no celular, "modo avião"? comigo acontece algo próximo, para que eu possa "funcionar" em situações assim, minha cabeça começa a ficar meio doida, dando vontade de gritar e cantando músicas, no mínimo, bizarras! rsrsrs. Bom, cada um com sua saída, né?!
Andávamos e esperávamos ansiosamente para chegar no final. A cada subida eu perguntava a Pablo quanto faltava, que nesse momento trabalhava no modo "eremita-egocentrico-introspectivo" de forma plena, o que impossibilitava ele dar uma simples resposta como: "sim Pedro, estamos no Cupim". Mas tinha seus motivos, sua mente trabalhava em conjunto com o fundo de sua alma, seus conflitos estavam ali para serem confrontados e curados. Ele, como um grande homem, se esforçava para conseguir, na medida do possível, fazer daquele exercício físico um exercício espiritual. De forma oposta estava Renata, rindo, se divertindo com cada piada sem graça que falávamos, a única menina (meio Barbie Offroad, kkkk) no meio de marmanjos. Ela quebrava qualquer preconceito sobre a força e a capacidade feminina, uma verdadeira guerreira. Daniel, seguia atrás, sempre atento a qualquer erro de caminho, como bom navegador que é, cuidando de seu pupilo Renato, que seguia sereno e no ritmo, mesmo depois do susto. Vinícius parecia um Buda, de mais de um metro e oitenta, com jeito troglodita e a força física de um touro. Bom, éramos uma boa equipe!
Com 13 horas de caminhada chegamos na beira do asfalto onde a Kombi nos esperava, todos bem fisicamente e felizes pelo feito. Com os descontos do tempo, que perdemos procurando Renato, acabamos por considerar que fizemos a travessia em 11h30, nada mal! A volta no asfalto foi tranquila, chegamos no nosso Hostel (Harpia).
Na postagem passada, sobre a Serra Fina, eu tinha feito um duro comentário ao Refugio Serra Fina, por nos ter negado um prato de comida na saída da trilha com o pretexto de que não estávamos hospedados lá – cada um com a sua metodologia de trabalho, mas, por favor, gentileza sempre! Quanto ao Hostel Harpia, digamos, é o simétrico oposto. Quem pretende fazer essa travessia, ou mesmo quem já fez, deve passar por lá, você se sente no ponto de reunião das pessoas que gostam da montanha. O Harpia é comandado por Rodolfo e Will, dois caras sensaionais que vivem, literalmente, das montanhas. A simplicidade, o estilo colonial da casa, o café quente na beira do fogão a lenha, o papo com quem entende vale qualquer hospedagem "mais chic", isso se você for desses que gosta, de fato, do mato!
Na postagem passada, sobre a Serra Fina, eu tinha feito um duro comentário ao Refugio Serra Fina, por nos ter negado um prato de comida na saída da trilha com o pretexto de que não estávamos hospedados lá – cada um com a sua metodologia de trabalho, mas, por favor, gentileza sempre! Quanto ao Hostel Harpia, digamos, é o simétrico oposto. Quem pretende fazer essa travessia, ou mesmo quem já fez, deve passar por lá, você se sente no ponto de reunião das pessoas que gostam da montanha. O Harpia é comandado por Rodolfo e Will, dois caras sensaionais que vivem, literalmente, das montanhas. A simplicidade, o estilo colonial da casa, o café quente na beira do fogão a lenha, o papo com quem entende vale qualquer hospedagem "mais chic", isso se você for desses que gosta, de fato, do mato!
Lembram que comecei a postagem com as indagações que o poema de Fernando Pessoa pode nos suscitar sobre a travessia? a elas retorno. A travessia, me parece, não é aquela que fazemos físicamente, a saber, cruzar a Serra a Fina. Mas, sobretudo, a travessia que fazemos dentro nós mesmo, no âmago de nossa alma, essa forma de introspecção que andando na montanha, passando frio, nos expondo em situações extremas, acaba por nos devolver a possibilidade de encontro com nós mesmo. Não é atoa que aqueles versos foram escritos pelo poeta do desassossego, afinal temos em comum com ele essa alma inquieta. Como o próprio poeta nos lembrou, "Viver não é preciso, navegar sim".