domingo, 13 de maio de 2012

Travessia Serra Fina: cume Pedra da Mina

         Quinta-feira dia 26 de abril, estou no facebook meia-noite conversando com Pablo (Bulcciarelli) sobre a travessia da Serra dos Orgãos que estamos programando para fazer no primeiro final de semana de junho. Papo vai papo vêm, detalhes da travessia discutidos, pergunto a Pablo como estão os preparativos já que no outro dia de manhã ele partiria para tentar fazer a travessia da Serra Fina sozinho e um único tiro (geralmente as pessoas demoram três dias!). Em 15 minutos de conversa ele consegue me convencer a ir acompanha-lo. Na sexta cedo comprei as comidas e as 16:00 já estava no ônibus que vai para Guaratinguetá, onde eu iria saltar no Graal Três Garças e Pablo estaria me esperando.
Mapa com a capacidade dos acampamentos.
A Serra Fina é uma travessia em estilo alpino (você carrega todos seus apetrechos sem contar com serviços de camping ou qualquer tipo de hospedagem) na Serra da Mantiqueira, mas precisamente entre as cidades mineiras de Passa Quatro e Itamonte. Considerada umas das travessias mais bonita e difícil da América do Sul, é uma trilha que segue pela crista da serra passando por diversos picos, incluindo o Pedra Mina (5° maior do Brasil, 2.798 m) e o Três Estados (2.665 m). No horizonte, ao sul você visualiza o Vale do Paraíba, a norte Minas Gerais suas montanhas e picos e a leste o Pico Agulhas Negras no Rio de Janeiro. Alucinante!!!

Cheguei por volta das 9 da noite no Graal TrÊs Garças, Pablo já me esperava. De lá rumamos para a Base de Marins, onde pousaríamos está noite na casa do Miltão (Milton Gouvêa). Ficou combinado com o Miltão que ele nos levaria a entrada da trilha e faria nosso resgate. Acordamos as 5 da manhã, uma neblina forte fazia gotejar pequenos pingos que me deixaram apreensivo, chuva não seria uma experiência legal acima de 2 mil metros de altitude e com vento. Tomamos o café da manhã no carro a caminho, as 7:40 da manhã começamos a trilha pela entrada da Toca do Lobo.

Eu e Pablo.
A primeira parte é uma longa e árdua subida 1000m de desnível. Estava uma neblina que impossibilitava ver o gigante que estávamos subindo, quando passamos a linha dos 2000 m acima do nível do mar ficamos a cima das nuvens, com sol e um visual incrível. Em duas horas estávamos no alto do Capim Amarelo, um dos primeiros lugares para acampar. Seguíamos com um tempo bem agradável e um sol que ajudava a secar a calça que já estava molhada pelo contato com o mato úmido. O ritmo estava ótimo e com pouca dificuldade estávamos encontrando a trilha, ora pelos totens deixados no caminho, ora pelo vão no meio do capim elefante.

A serra é realmente bem fina, tem momentos que você caminha pela crista onde largura dela não passa de 5 metros. Ao longe montanhas escarpadas se impõe fazendo um cenário sublime. No pé da subida para a Pedra da Mina começou um vento forte que nos obrigou a tirar o casaco da mochila. As 14:20 assinamos o livro de cume, a neblina baixou de novo.

É preciso fazer uma pausa e introduzir o leitor nos vários equívocos que cometemos nesta tentativa, que por pouco não resultou nestas matérias que jornal adora. Quando saímos para a travessia não levamos nenhum mapa para nos referenciar e nunca tínhamos estado lá. Estávamos nos orientando pelos picos, e quando assinamos o livro de cume da Pedra da Mina pensávamos que era o Três Estados, pois para nós era o maior pico nesta travessia. No relato a seguir que vou narrar está com os nomes de acordo de onde pensávamos que estavamos, tenha isso em mente ao ler.

Voltando. Descemos seguindo os totens de pedra, feliz tínhamos feito seis horas até os Três Estados, um tempo incrível. De acordo com nossos cálculos em duas horas estaríamos no carro, terminando a travessia. A trilha terminou num vale e tinha uns totens indicando a subida de uma costa de pedra a nossa frente. Seguimos os totens, literalmente no meio da neblina com visibilidade reduzida a meros 20 metros. Em 15 minutos fazíamos cume numa pequena montanha. Paramos e ligamos para o Miltão pedindo que fosse nos buscar, pois chegaríamos as 18:00 horas e não a meia-noite como combinado.
Pedra da Mina se impondo ao fundo.

Descemos esta montanha e nos deparamos com um vale recoberto por um grande charco cheio de capim elefante. Nem rastro de trilha e os totens tinham acabado no cume da montanha. Por duas horas ficamos tentando rasgar o capim elefante para encontrar a entrada da trilha. O Pablo desenvolveu uma verdadeira técnica de transpor o capim elefante, mergulho de peito nele! Rsrsrs. Estava dando desespero de ver aquela situação de ter que pular de peito para andar 5 metros.

Bem cansados resolvemos subir a montanha de novo e ver se não tínhamos perdido os totens mais acima. Subimos no cume e nada de totem para nenhum lado, apenas os que retornavam na trilha que tínhamos vindo. Vi uma trilha descendo a sul da montanha e desci para ver apara onde ia dar. 50 m a abaixo, bem na crista da montanha, tinha os destroços de um avião monomotor na serra. O Pablo ficou bem assustado e deu meia volta na hora. Voltamos e tentamos acessar a internet via celular para tentar encontrar alguma referencia. Estava ruim a conexão e descemos de novo para procurar trilha mais a baixo, pois o rumo da bússola indicava para lá.

Nada de trilha e a noite caiu. Pablo se recordou que no seu celular tinha um email que estava o relato de um cara que tinha feito à travessia. Abriu o email e de acordo com a narrativa o morro depois do Três Estados era o Morro dos Ivos, e o cara ainda falava que depois do cume tínhamos que pegar uma trilha a direita. “Porra Pablo”, falei, “é a trilha que estávamos descendo e que você quis voltar”. Ânimos tranquilizados subimos novamente e pegamos a trilha. Neste momento já ventava muito e a sensação térmica beirava os 0°C.

Acima das nuvens.
A trilha levava por uma curta aresta que dava num pequeno platô, em seguida ela acabava. Continuamos descendo pela encosta com uma escarpa gigantesca ao nosso lado intimidando qualquer mudança de rota. Segundo o relato, abaixo encontraríamos uma mata e a trilha ia por dentro dela. Nada de mata, apenas muito capim elefante e pouco progresso na distância percorrida. Aquela situação estava começando a ficar ruim.

 Depois de muito tentar encontrar a suposta trilha, bem esgotado, sugeri ao Pablo que parecemos e dormíssemos e pela manhã, com claridade, tentaríamos encontrar o caminho. O Pablo acatou a sugestão, e num pequeno colo da montanha tentamos descansar. Como pretendíamos fazer a travessia numa única investida fizemos a opção de ir ao estilo minimalista, ou seja, uma mochila de ataque com o mínimo de peso possível. Não tínhamos saco de dormir nem nada que pudéssemos nos abrigar. As rajadas de vento estavam castigando, embrenhávamos no capim para tentar nos esconder, em vão.

Virava de um lado me acomodava e conseguia relaxar, quando começava a cochilar era tomado por um frio que me fazia retomar o ritual: vira de lado, coloca as mãos entre as pernas para esquentar e procura um abrigo no capim para o pé. Este mesmo ritual se repetiu até as 3 manhã, que como um pesadelo algumas gotas bateram no capús do meu casaco. Não podia acreditar, estava chovendo, nãooo!!!! “Sentiu os pingos?” perguntei a Pablo, “Sim”, ele respondeu. Nenhuma palavra foi trocada mais, qualquer comentário poderia tirar a pouca força psicológica que ainda nos sustentava, sabíamos sem querer.

Três intermináveis horas nos castigaram até que a claridade irrompeu e permitiu a tentativa de alguns movimentos. Tremendo e com muito frio colocamos o tênis em baixo da chuva e começamos a odisseia de subir, mais uma vez, aquele pico. Impressionante, quando descemos não demos conta do tanto que estávamos expostos. Uma vez no cume, outra vez (o leitor já deve estar cansado deste cume, imagina nós lá!), descemos de novo para tentar encontrar a trilha mais abaixo. 

Nada de trilha e sobe para o cume outra vez. O frio começou a ficar insuportável e estávamos desesperados já, naquele estado que o raciocínio não está trabalhando no seu modo pleno. Liguei para a Bruna, uma amiga (e anja) minha, para ela tentar encontrar alguma referência. Passado alguns minutos ela retorna e tinha conseguido contatar o Marcos (desconhecido, gente boa que tentou nos ajudar de todo jeito. Inclusive ligou para Globo...). O Marcos me ligou e informou que tinha ligado para os bombeiros e que era para eu ligar e passar as referências.

Liguei e falei com um cabo (que não recordo o nome, mas que sou extremamente grato pela sua ajuda), como de praxe ele perguntou se estávamos com algum guia, se tínhamos GPS, se estávamos machucado, se tínhamos comida e se sabíamos voltar. As três primeiras respostas foram negativas e as duas últimas positivas. Bom, ele disse que se fosse nos resgatar demoraria 8 horas. Então era mais fácil voltarmos para trás, pois não estávamos nos Três Estados, mas na Pedra da Mina, onde tem um avião caído!

Neste instante que percebemos nosso erro e vimos o quanto fomos infantis de tentar fazer uma travessia desse porte sem cumprir o primeiro dos requisitos, o Mapa! De certa forma, era um pouco isso que queríamos fazer, encontrar o caminho no tato. Somos corredores de aventura e este tipo de desafio nos inspira, mas na Serra Fina a montanha mostrou quem manda e que erros podem ser fatais. Pensa bem, se alguém machucasse? Se fossemos picado por cobra? Qualquer outra eventualidade? O bombeiro está a 8 horas! Ali, é um dos lugares em que natureza manda com todo vigor sobre nossa pequenez humana.
Livro de cume no alto da Pedra da Mina.

Tem horas que o mais sábio é entender estes avisos, agradecer por estar tudo bem, agradecer por estar ali e voltar para traz. A sensação era de missão cumprida, pois tínhamos feito cume na Pedra Mina, exploramos bem um lado da serra e sabíamos o caminho certo agora. À volta foram longas 8 horas de caminhada, bem fadigados e comendo apenas barrinhas de cereais, não tínhamos mais nada.

As 18:30 chegamos na entrada da trilha onde o Miltão tinha nos deixado. Perto tem uma pousada bonita, nova, Pousada Serra Fina. Vínhamos à volta inteira sonhando em chegar lá para poder comprar um prato de comida quente. Batemos na porta e fomos atendidos friamente por uma funcionária. Explicamos nosso caso e perguntamos se não podia vender uma sopa para nós ou qualquer coisa quente para comer enquanto esperávamos nosso amigo. Ela entrou e foi consultar sua superior, passado alguns minutos voltou dizendo que só poderia nos servir alguma comida se nos hospedássemos lá, caso contrário não.

Tudo bem pode ser uma política da pousada não vender comida para não se transformar num restaurante. Mas nosso caso era daqueles em que as relações humanas que estão envolvidas, especialmente um sentimento que chamamos solidariedade. Sentimento este que é irradiado quando estamos em ambientes hostis. Estranho alguém que pretende ter como clientes sujeitos que querem estar perto da natureza, que querem, justamente, romper a frieza das relações distantes da cidade grande ter uma postura como essa. É um típico caso, aquele que vemos de monte na metrópole, onde as instituições se sobrepõem as relações humanas, onde em nome de uma empresa e de suas normas rompe este laço profundo da solidariedade. Uma pena!

Assinando o livro de cume.
Como um milagre, 5 minutos depois, o Miltão chegou. Fomos até a cidade de Piquete, tomamos um banho, comemos uma pizza e tomei com o Miltão um par de cervejas. Pablo me deixou no Graal novamente e peguei o ônibus para o Rio. No outro dia (30 de abril) eu tinha que qualificar meu projeto de mestrado... É assim mesmo, da montanha para vida acadêmica, do coração da natureza para o centro da cultura.

A despeito desse episódio da pousada, é muito feliz ver o estado da trilha e como está preservado o local. Não encontramos nenhum lixo, a não ser aqueles que são evidentemente não propositais. Pode ser que pela dificuldade dela não seja frequentada por entusiastas e fanfarrões, mas por aqueles que realmente amam as montanhas. Quem ama cuida! Em breve voltaremos para lá e completaremos este desafio de fazer esta travessia num único dia, aguardem.