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Mapa com a capacidade dos acampamentos. |
A Serra Fina é uma
travessia em estilo alpino (você carrega todos seus apetrechos sem contar com
serviços de camping ou qualquer tipo de hospedagem) na Serra da Mantiqueira,
mas precisamente entre as cidades mineiras de Passa Quatro e Itamonte.
Considerada umas das travessias mais bonita e difícil da América do Sul, é uma
trilha que segue pela crista da serra passando por diversos picos, incluindo o
Pedra Mina (5° maior do Brasil, 2.798 m) e o Três Estados (2.665 m). No
horizonte, ao sul você visualiza o Vale do Paraíba, a norte Minas Gerais suas
montanhas e picos e a leste o Pico Agulhas Negras no Rio de Janeiro.
Alucinante!!!
Cheguei por volta das 9
da noite no Graal TrÊs Garças, Pablo já me esperava. De lá rumamos para a Base
de Marins, onde pousaríamos está noite na casa do Miltão (Milton Gouvêa). Ficou
combinado com o Miltão que ele nos levaria a entrada da trilha e faria nosso
resgate. Acordamos as 5 da manhã, uma neblina forte fazia gotejar pequenos pingos
que me deixaram apreensivo, chuva não seria uma experiência legal acima de 2
mil metros de altitude e com vento. Tomamos o café da manhã no carro a caminho,
as 7:40 da manhã começamos a trilha pela entrada da Toca do Lobo.
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Eu e Pablo. |
A primeira parte é uma longa e árdua subida 1000m de desnível. Estava uma neblina que
impossibilitava ver o gigante que estávamos subindo, quando passamos a linha
dos 2000 m acima do nível do mar ficamos a cima das nuvens, com sol e um visual
incrível. Em duas horas estávamos no alto do Capim Amarelo, um dos primeiros
lugares para acampar. Seguíamos com um tempo bem agradável e um sol que ajudava
a secar a calça que já estava molhada pelo contato com o mato úmido. O ritmo
estava ótimo e com pouca dificuldade estávamos encontrando a trilha, ora pelos
totens deixados no caminho, ora pelo vão no meio do capim elefante.
A serra é realmente bem
fina, tem momentos que você caminha pela crista onde largura dela não passa de
5 metros. Ao longe montanhas escarpadas se impõe fazendo um cenário sublime. No
pé da subida para a Pedra da Mina começou um vento forte que nos obrigou a
tirar o casaco da mochila. As 14:20 assinamos o livro de cume, a neblina baixou
de novo.
É preciso fazer uma pausa
e introduzir o leitor nos vários equívocos que cometemos nesta tentativa, que por pouco
não resultou nestas matérias que jornal adora. Quando saímos para a travessia
não levamos nenhum mapa para nos referenciar e nunca tínhamos estado lá.
Estávamos nos orientando pelos picos, e quando assinamos o livro de cume da
Pedra da Mina pensávamos que era o Três Estados, pois para nós era o maior pico
nesta travessia. No relato a seguir que vou narrar está com os nomes de acordo
de onde pensávamos que estavamos, tenha isso em mente ao ler.
Voltando. Descemos seguindo
os totens de pedra, feliz tínhamos feito seis horas até os Três Estados, um
tempo incrível. De acordo com nossos cálculos em duas horas estaríamos no carro,
terminando a travessia. A trilha terminou num vale e tinha uns totens indicando
a subida de uma costa de pedra a nossa frente. Seguimos os totens, literalmente
no meio da neblina com visibilidade reduzida a meros 20 metros. Em 15 minutos
fazíamos cume numa pequena montanha. Paramos e ligamos para o Miltão pedindo
que fosse nos buscar, pois chegaríamos as 18:00 horas e não a meia-noite como
combinado.
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Pedra da Mina se impondo ao fundo. |
Descemos esta montanha e
nos deparamos com um vale recoberto por um grande charco cheio de capim
elefante. Nem rastro de trilha e os totens tinham acabado no cume da montanha.
Por duas horas ficamos tentando rasgar o capim elefante para encontrar a
entrada da trilha. O Pablo desenvolveu uma verdadeira técnica de transpor o
capim elefante, mergulho de peito nele! Rsrsrs. Estava dando desespero de ver
aquela situação de ter que pular de peito para andar 5 metros.
Bem cansados resolvemos
subir a montanha de novo e ver se não tínhamos perdido os totens mais acima.
Subimos no cume e nada de totem para nenhum lado, apenas os que retornavam na
trilha que tínhamos vindo. Vi uma trilha descendo a sul da montanha e desci para
ver apara onde ia dar. 50 m a abaixo, bem na crista da montanha, tinha os
destroços de um avião monomotor na serra. O Pablo ficou bem assustado e deu meia volta na hora. Voltamos e tentamos acessar a internet via
celular para tentar encontrar alguma referencia. Estava ruim a conexão e
descemos de novo para procurar trilha mais a baixo, pois o rumo da bússola
indicava para lá.
Nada de trilha e a noite
caiu. Pablo se recordou que no seu celular tinha um email que estava o relato
de um cara que tinha feito à travessia. Abriu o email e de acordo com a
narrativa o morro depois do Três Estados era o Morro dos Ivos, e o cara ainda
falava que depois do cume tínhamos que pegar uma trilha a direita. “Porra
Pablo”, falei, “é a trilha que estávamos descendo e que você quis voltar”.
Ânimos tranquilizados subimos novamente e pegamos a trilha. Neste momento já
ventava muito e a sensação térmica beirava os 0°C.
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Acima das nuvens. |
A trilha levava por uma
curta aresta que dava num pequeno platô, em seguida ela acabava. Continuamos
descendo pela encosta com uma escarpa gigantesca ao nosso lado intimidando
qualquer mudança de rota. Segundo o relato, abaixo encontraríamos uma mata e a
trilha ia por dentro dela. Nada de mata, apenas muito capim elefante e pouco
progresso na distância percorrida. Aquela situação estava começando a ficar
ruim.
Depois de muito tentar encontrar a
suposta trilha, bem esgotado, sugeri ao Pablo que parecemos e dormíssemos e pela
manhã, com claridade, tentaríamos encontrar o caminho. O Pablo acatou a sugestão,
e num pequeno colo da montanha tentamos descansar. Como pretendíamos fazer a
travessia numa única investida fizemos a opção de ir ao estilo minimalista, ou
seja, uma mochila de ataque com o mínimo de peso possível. Não tínhamos saco de
dormir nem nada que pudéssemos nos abrigar. As rajadas de vento estavam
castigando, embrenhávamos no capim para tentar nos esconder, em vão.
Virava de um lado me
acomodava e conseguia relaxar, quando começava a cochilar era tomado por um
frio que me fazia retomar o ritual: vira de lado,
coloca as mãos entre as pernas para esquentar e procura um abrigo no capim para
o pé. Este mesmo ritual se repetiu até as 3 manhã, que como um pesadelo algumas
gotas bateram no capús do meu casaco. Não podia acreditar, estava chovendo,
nãooo!!!! “Sentiu os pingos?” perguntei a Pablo, “Sim”, ele respondeu. Nenhuma
palavra foi trocada mais, qualquer comentário poderia tirar a pouca força
psicológica que ainda nos sustentava, sabíamos sem querer.
Três intermináveis horas
nos castigaram até que a claridade irrompeu e permitiu a tentativa de alguns
movimentos. Tremendo e com muito frio colocamos o tênis em baixo da chuva e
começamos a odisseia de subir, mais uma vez, aquele pico. Impressionante,
quando descemos não demos conta do tanto que estávamos expostos. Uma vez no
cume, outra vez (o leitor já deve estar cansado deste cume, imagina nós lá!),
descemos de novo para tentar encontrar a trilha mais abaixo.

Nada de trilha e sobe
para o cume outra vez. O frio começou a ficar insuportável e estávamos
desesperados já, naquele estado que o raciocínio não está trabalhando no seu
modo pleno. Liguei para a Bruna, uma amiga (e anja) minha, para ela tentar
encontrar alguma referência. Passado alguns minutos ela retorna e tinha
conseguido contatar o Marcos (desconhecido, gente boa que tentou nos ajudar de
todo jeito. Inclusive ligou para Globo...). O Marcos me ligou e informou que
tinha ligado para os bombeiros e que era para eu ligar e passar as referências.
Liguei e falei com um
cabo (que não recordo o nome, mas que sou extremamente grato pela sua ajuda),
como de praxe ele perguntou se estávamos com algum guia, se tínhamos GPS, se
estávamos machucado, se tínhamos comida e se sabíamos voltar. As três primeiras respostas
foram negativas e as duas últimas positivas. Bom, ele disse que se fosse nos
resgatar demoraria 8 horas. Então era mais fácil voltarmos para trás, pois não
estávamos nos Três Estados, mas na Pedra da Mina, onde tem um avião caído!
Neste instante que
percebemos nosso erro e vimos o quanto fomos infantis de tentar fazer uma
travessia desse porte sem cumprir o primeiro dos requisitos, o Mapa! De certa
forma, era um pouco isso que queríamos fazer, encontrar o caminho no tato.
Somos corredores de aventura e este tipo de desafio nos inspira, mas na Serra
Fina a montanha mostrou quem manda e que erros podem ser fatais. Pensa bem, se
alguém machucasse? Se fossemos picado por cobra? Qualquer outra eventualidade?
O bombeiro está a 8 horas! Ali, é um dos lugares em que natureza manda
com todo vigor sobre nossa pequenez humana.
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Livro de cume no alto da Pedra da Mina. |
Tem horas que o mais
sábio é entender estes avisos, agradecer por estar tudo bem, agradecer por
estar ali e voltar para traz. A sensação era de missão cumprida, pois tínhamos
feito cume na Pedra Mina, exploramos bem um lado da serra e sabíamos o caminho
certo agora. À volta foram longas 8 horas de caminhada, bem fadigados e comendo
apenas barrinhas de cereais, não tínhamos mais nada.
As 18:30 chegamos na
entrada da trilha onde o Miltão tinha nos deixado. Perto tem uma pousada
bonita, nova, Pousada Serra Fina. Vínhamos à volta inteira sonhando em chegar
lá para poder comprar um prato de comida quente. Batemos na porta e fomos
atendidos friamente por uma funcionária. Explicamos nosso caso e perguntamos se
não podia vender uma sopa para nós ou qualquer coisa quente para comer enquanto
esperávamos nosso amigo. Ela entrou e foi consultar sua
superior, passado alguns minutos voltou dizendo que só poderia nos servir
alguma comida se nos hospedássemos lá, caso contrário não.
Tudo bem pode ser uma
política da pousada não vender comida para não se transformar num restaurante.
Mas nosso caso era daqueles em que as relações humanas que estão envolvidas,
especialmente um sentimento que chamamos solidariedade. Sentimento este que é
irradiado quando estamos em ambientes hostis. Estranho alguém que pretende ter
como clientes sujeitos que querem estar perto da natureza, que querem,
justamente, romper a frieza das relações distantes da cidade grande ter uma
postura como essa. É um típico caso, aquele que vemos de monte na metrópole,
onde as instituições se sobrepõem as relações humanas, onde em nome de uma empresa
e de suas normas rompe este laço profundo da solidariedade. Uma pena!
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Assinando o livro de cume. |
Como um milagre, 5
minutos depois, o Miltão chegou. Fomos até a cidade de Piquete, tomamos um
banho, comemos uma pizza e tomei com o Miltão um par de cervejas. Pablo me
deixou no Graal novamente e peguei o ônibus para o Rio. No outro dia (30 de
abril) eu tinha que qualificar meu projeto de mestrado... É assim mesmo, da
montanha para vida acadêmica, do coração da natureza para o centro da cultura.
A despeito desse episódio
da pousada, é muito feliz ver o estado da trilha e como está preservado o
local. Não encontramos nenhum lixo, a não ser aqueles que são
evidentemente não propositais. Pode ser que pela dificuldade dela não seja
frequentada por entusiastas e fanfarrões, mas por aqueles que realmente amam as montanhas.
Quem ama cuida! Em breve voltaremos para lá e completaremos este desafio de
fazer esta travessia num único dia, aguardem.